16 de setembro de 2011

A tautologia das lagartas que se transformam em borboletas

Tautologia. Dizer a mesma coisa em um número variado de vezes. Trazendo sonoros distúrbios da mente a boca, até que a outra pessoa vá embora e te deixe falando sozinho.  

Tá. E que diabos tem a lagarta a ver com isso? A ver eu não sei. Mas a me fazer sentir. Sim, isso eu sei. E conto aqui uma história dos tempos que se amarrava cachorro com lingüiça e que namorar alguém era, na verdade, flertar na porta da igreja.

Foi bem assim. Eu tinha lá meus sete anos de idade. E gostava muito de subir em árvores, para pegar goiaba. Fruta esta que, convenhamos, exige a paciência dos monges budistas para se comer. E quando você pensa que finalmente vai se lambuzar todo com aquela delícia vermelha, aqueles amendoins disfarçados de sementes grudam em seus dentes e, lasqueira, até perde o gosto pela fruta. Pois, é. Essa natureza ensina a gente, mesmo.

Mas o que eu queria contar vai além das aparências. Vai além dos empecilhos. Porque você pensa que o mais difícil é enfrentar os caroços e, finalmente, encher a pança com a guloseima. Mas não é que essa tal de natureza prega umas na gente que, se não fosse outra vez a paciência dos monges budistas, eu já tinha descido da árvore e chamado o gato pra dentro!

Era uma tarde gostosa. O sítio do meu Vô Zé costumava ficar repleto de fruta caída pelo chão. As galinhas iam passando, vasculhando tudo que encontravam. Enchiam o bico. E ficavam todas cheias esperando os galos, que já nessa época só queriam galantear as galinhas mais novas. Engraçado que as mais crescidinhas nem davam ligança. Elas até pareciam saber que seu peito era mais cheio, sua pena mais bonita e, claro, seu bico tinha mais comida. Eu me divertia olhando as galinhas.

Tinha um coelho azul marinho também. Porque meu irmão era muito levado à breca e resolveu pintar o bicho. Tinha um cachorro manco. Uma cobra caninana e um esquilo que, de vez em nunca, aparecia no banheiro quando eu estava tomando banho.

Naquela tarde eu só queria ficar em cima da árvore comendo goiaba. E comia com toda aquela paciência já descrita. Sim, a dos monges. E comia com as mãos, com os olhos, ouvidos e se for dizer aqui, até com os pés eu devo ter comido. Era o meu exercício preferido de matemática. Até que uma hora eu perdia as contas e começava a estudar física. Até joguei uma goiaba na cabeça do gato, que estava de baixo da árvore, mas nada aconteceu. Acho que Newton teve aquela ideia por que era uma maçã, não é mesmo? Goiaba não tem o poder do pecado.

E eu lá, agarrada no meu galho favorito. O terceiro da parte esquerda. Já tinha comido tanta goiaba que nem avistava mais as que ainda existiam. Até que, olhando um pouco para o alto, percebi que ainda havia uma frutinha sobrando. Não pensei duas vezes. Subi até o quinto galho da árvore ( Sim, eu sabia sobre todos os galhos) e fui me apoiando no caule, até finalmente tomar em minhas mãos a famigerada fruta.

Não sei. De todas, ela era a mais diferente, era mais redonda, ou oval, não sei bem explicar, mas tinha um “quê” de subversiva, descumpridora de regras. E lá lá lá, lá lá lá. Paremos de tanta tautologia, não é mesmo? O fato é que aquela era a goiaba.

Eis que eu a peguei na mão, e quando já ia começar todo o processo de levá-la até a boca, mastigar, engolir e desfrutar, vi que desta vez o processo iria ser muito, mas muito mais custoso. E dolorido. Pois nem consegui morder. Vi que pesava mais. De fato, seu interior pesava. Eu, ainda, não podia enxergar o que nela havia, mas eu podia sentir. E isso fazia daquela goiaba algo além de goiaba. Além da relação estabelecida com as outras tantas daquela árvore.

O processo de descobrimento
Olhei. Olhei de novo. Olhei mais uma vez. Chacoalhei. Bati com ela no caule e nada. Desisti. “Mas eu odeio desistir no meio do caminho”, pensei. Fiz todo o processo novamente, olhei. Olhei. Olhei mais uma vez. Choaqualhei e bati no caule. E isso perdurou pelo menos uma hora. Naquela época eu nem sequer imaginava o que era paciência, muito menos monge e nunca tinha ouvido a palavra budismo. Mas. Foi exatamente a paciência dos monges budistas que me fizeram permanecer ali, concentrada em meu objetivo. Aquela goiaba.

Nessa altura, eu já não sabia se queria ter, de fato, a goiaba. Agora, queria mais é conhecê-la, saber o que a tornava tão diferente das demais. O que me fazia gastar toda aquela tarde. Eu só queria entender. Mesmo odiando a palavra entender, que sempre soava da boca de minha mãe quando estava brava comigo.

Depois de repetir o processo muitas vezes, a goiaba enfim se rompeu. Rompeu e se espalhou inteira em mim, fazendo que o susto me derrubasse naquela terra molhada de chuva. Cai com ela na mão. Ainda bem. Pois seria muito frustrante, depois de tudo aquilo, não saber sobre sua verdadeira realidade.

De fato, não era mesmo apenas uma goiaba. E seu interior não era vazio como o das outras tantas que já estavam em minha barriga. Seu interior tinha vida. E essa vida tinha nome. Seu nome era lagarta. Uma lagarta perdida, que sonhava em ser bicho de goiaba, pois lhe diziam que bicho de goiaba é goiaba também. E eu, monge já, fiz com que ela saísse daquele sonho e descobrisse sua verdadeira essência.

Agora, ela já não era mais goiaba. Nem mesmo bicho de goiaba. Era uma lagarta que, dali a pouco, alcançou vôos intermináveis, sem ordem de chegada ou de partida.  Voava solta, leve, azul, amarela e um pouco verde. Ela precisava apenas  que alguém tivesse a paciência dos monges budistas para que ela se tornasse enfim borboleta.

Leitores de nossas próprias vidas

A cada dia nos vemos como sendo leitores de nossas próprias vidas. Logo no primeiro tropeço do autor já pensamos em desistir de continuar a leitura. Sem pensar que um bom leitor é aquele que consegue reparar que o melhor do livro não está no começo. Mas no decorrer das sílabas que, pouco a pouco, vão se montando e se remontando em sua mente.  

Um bom leitor não é aquele que julga as vírgulas mal postas pelo meio do caminho. Pelo contrário, ele as enxerga somente como um ponto inclinado para baixo, devido ao suposto mal de Parkinson do autor.

Esta vírgula, então, faz com que ele tenha uma leitura mais aguçada do que leu, percebendo o sentido deste ponto inapropriado, que pode tomar um sentido inesperado, mas que faça todo o sentido no próximo capítulo.

A diferença do livro para a vida, é que nós, além de leitores, somos os próprios escritores dessas páginas sem previsão de “the end”. 

João e o Pé de Cobra


Desde pequeno João era meio ranzinza. Birrento de tudo. Mas nunca chorava. Segurava as lágrimas, assim como hoje segura o dinheiro da aposentadoria. Era um desses meninos raquíticos. Miúdo. Mas quando o bicho pegava, sabia correr muito bem.
Nessa época, João tinha uns quatro anos e meio, e seus pais e irmãos moravam no sítio do Seu Joanim, em Atibaia, interior de São Paulo. Seu Joanin era filho de italianos, que chegaram a São Paulo na época da imigração. Sitiante, era um homem remediado, plantava frutas e verduras para vender para a população local.
Dona Laurentina, mãe de João, tinha uma grande estima por Seu Joanin. Que, além de patrão, era também seu compadre. Padrinho do nosso então João.
Caseiros do sítio, Dona Laurentina e Seu Sebastião trabalhavam noite e dia para sustentar os filhos. E, para um dia, conseguirem ter sua própria casa. O sítio era grande, com muitas variedades de plantações – batata-doce, arroz, feijão, milho – entre tantos outros. O trabalho era árduo, mas a família seguia feliz. Afinal, viviam em harmonia com a natureza.
Tão em harmonia, que um dia João quis trazer um novo membro para a família. Mesmo rabugento, sempre teve um bom coração. Até para com os animais.
João no país das maravilhas
Certa vez, enquanto João estava brincando na terra, com todas as suas formigas e insetos de toda natureza, ele viu passar correndo por seus olhos uma cobra. Uma cobra de paletó verde e um relógio na mão. Continuou brincando, quando de repente se questionou. “Mas cobras não usam paletó. Muito menos verde”.
João saiu correndo atrás da cobra, quando a viu entrando em um buraco (e não em uma toca, como na história de Alice). João se apressou, para alcançar aquela curiosa criatura. Chegou a dar uma volta inteira pela casa, formando uma circunferência de 380º. Isso tudo para saber o destino do animal. Eis, então, que a cobra entrou em um dos buracos de baixo de sua casa. Naquela época, todas as casas de concreto não eram construídas direto no chão. Havia uma espécie de sub-andar, onde se instalavam seus alicerces. Entre eles havia muitos vãos. E em um destes, lá ficou a dona cobra de paletó verde.
O buraco era pequeno e João, apesar de miúdo, não conseguiu nele entrar. Foi quando teve uma grande idéia grande. Iria, a partir daquele dia, alimentar sua mais nova amiga e companheira. A cobra se tornou, desde então, a irmã mais nova de João. E era seu dever cuidar dela, até que ela crescesse e virasse adulta e tivesse também uma família, com filhos e netos, assim como haveria de ser um dia a família de João.
A partir disto, João criou uma estratégia para alimentá-la. Todo dia, depois do almoço, deixava um restinho de comida no prato. “Onde já se viu! Tanta gente passando fome aí e esse menino desperdiçando”. Franzia a testa o pai de João, que era um homem muito bravo. Enquanto sua mãe comentava,  “Ara, Bastião! Antes ele comer um pouco do que não comer nada”. João permanecia calado. Afinal, ninguém poderia desconfiar que aquele pouco de comida  tinha um objetivo predestinado.
No primeiro dia, o menino levou apenas umas duas colheres de arroz. No segundo, levou arroz e feijão. E, depois de duas semanas, quando viu a evolução de sua cria, começou a levar também batata, cenoura, carne. Quanto mais a cobra ia crescendo, mais João se empenhava em deixar no prato mais um tanto de comida. Sua fome até passava, com a ansiedade de ir alimentar o bicho.
Dois meses se passaram. E a mãe de João começou a ficar preocupada. O menino já era magro. Deixando comida no prato daquele jeito, ia ficar mais magro ainda. Até fez uma simpatia para o menino Jesus, para que seu filho comesse mais. Senão, daqui a pouco, iria morrer de anemia nos olhos. (No interior, as pessoas medem o grau de anemia de alguém pelo canto inferior dos olhos. Quanto mais vermelho estiver, menos anemia tem). O canto inferior dos olhos de João nem cor tinham, mais.
Foi quando Dona Laurentina resolveu perguntar a ele por que deixava todos os dias, um resto de comida no prato. Assustado e com medo de apanhar, João não respondeu. A senhora insistiu e ameaçou deixá-lo de castigo caso não contasse. João hesitou. O que ele faria? O que seria da vida da cobra de paletó verde? E todos os planos de vida que ele tinha pensado para ela?
Devoto de São João, seu santo protetor, o garoto pediu ao milagreiro que cuidasse da cobra, para que ela não morresse, mesmo que sua a mãe a descobrisse. E, aproveitando que este era um santo casamenteiro, João pediu também que ele ajeitasse um casamento pra dona cobrinha, para que ele pudesse mesmo se casar, ter filhos, netos e bisnetos.
Já com a vara na mão para nele bater, João não agüentou a pressão de sua mãe e contou a ela o que lhe motivava a deixar um tanto de comida no prato.
“Eu tenho uma amiga. Uma amiga cobra. E tive dó dela, coitada! Ia deixar ela passando fome?”, explicou-se João.
“Com uma amiga dessa você não precisa nem de inimiga!”, esbravejou dona Laurentina. “Nunca mais vai deixar comida no prato para cobra alguma”.
Dona laurentina foi lá averiguar. E, de fato, a tal cobra existia. Não tinha paletó verde, como imaginava João. Mas era uma cobra caninana, que tem por característica a cor esverdeada. João, confiante no santo de seu nome, não mais foi levar comida à cobra, que já havia alcançado um metro de cumprimento.
Até hoje, com 59 anos, ele nunca mais deixou comida no prato!

13 de setembro de 2011

A tautologia das lagartas

A tautologia das lagartas gigantes às vezes me cansa os ouvidos, às vezes me deixa perplexa e noutras fico me sentindo lagarta. Largada. Erguida. Assovio alto para as cobras que, com certeza, estão à espreita. Elas vêm de forma rasteira, mas no meio do sonho eu sempre as mato com a ponta dos dedos. E, daí, como numa confusão de sentidos eu descubro que ainda estou dormindo.  Continuo de olhos fechados. Finjo para meu inconsciente que estou dormindo, para ver o que ele pode fazer. Eis que percebo que meu inconsciente sou eu também, tentando mais uma vez me enganar nas tautologias das lagartas. 

Já conversaste alguma vez com uma lagarta? Eis que o enrolar de vossos corpos podem nos trazer imensos ensinamentos. Devagarinho, a lagarta se fecha todo consigo mesma para então conseguir caminhar. Depende dela, apenas dela este ato dolorido, mas que no final traz um alívio singelo. Singelo aos nossos olhos. Eis um alívio grandioso o fato de se embrulhar dentro de si e sozinho conseguir se encontrar, achar e caminhar. 

Ando aprendendo muito com a tautologia das lagartas!