Recordar: do latim recordis, voltar a passar pelo coração.
Quantas são as pessoas que não desejam, ao menos em uma fração de segundos, passar novamente pelo coração
aquela sensação que outrora viveu? Todo mundo sente vontade de recordar, de
voltar a passar pelo coração. E, ao mesmo tempo, sente medo, muito medo de não
sentir mais esse “coração”, caso a memória seja esquecida.
Emoção e
memória. Duas palavras dentro de um mesmo organismo vivo, revirando células e
neurônios, em busca de um sentido para a vida.
Para um escritor, a memória passa pelos dedos até se transformar em verbetes. Para uma senhora
de 89 anos, ela passa apenas e exclusivamente pela alma. Dona Laurentina Almeida nasceu em 1923, em uma fazenda
de Piracaia, interior de São Paulo. Infelizmente, não pôde estudar. Não
escreve, nem lê. Mas dinheiro ela sabe contar, sim senhor. E, apesar da idade
avançada, lembra de todas as datas e nomes de pessoas daquela época da fazenda.
“Eu tenho muito medo de perder a memória, mas eu rezo todos os dias para o
Divino Espírito Santo não deixar isso acontecer, já que meu falecido marido
morreu com Alzheimer”.
Dona
Laurentina caminha bem, sem precisar se escorar em algum tipo de acessório. As
rugas em seu rosto parecem um mapa, indicando os caminhos pelos quais esta
senhora percorreu durante os seus quase oitenta e nove anos. São linha finas,
mas cheias de memória.
São 10h25 da
manhã. Já faz quatro horas que ela se levantou da cama. Começa, agora, a
preparar o almoço. “Acordo sempre umas cinco e pouco”. Diz ela, enquanto amarra
o lenço na cabeça. A senhora não sabe explicar por que acorda tão cedo. Sempre
foi assim, desde os tempos que morava no interior. “Tem muito que fazer. A
turma vai trabalhar e tem muito que fazer da vida, na casa”.
Hoje é
sexta-feira. Dia de peixe na casa da família de dona Laurentina. Pede pra eu
acompanhá-la na pia do rancho, onde irá limpar o peixe. Enquanto responde às
minhas perguntas, a alegre senhora vai tirando os espinhos da sardinha que
daqui a pouco será frita.
A maior
parte do tempo matinal, Laurentina passa na cozinha, onde o tempo nunca para,
sempre se mexe entre uma colher e outra dentro da panela. E esse tempo, para ela, parece estar em uma
constante ebulição, fazendo o horário do almoço chegar mais rápido que o
esperado.
Quando
pergunto a data de seu nascimento, ela diz, enfaticamente, “põe trinta de
novembro, data de registro. O dia no nascimento, quinze de novembro,
morreu”. E entre um prato e outro,
Laurentina vai contando sua história, com uma riqueza de detalhes que
impressiona, já que são coisas que se passaram há setenta ou oitenta anos. “Com
cinco anos eu já fazia serviço: varria a casa, escolhia feijão e cuidava do meu
irmãozinho, o compadre Zezinho”. Enquanto fala, tira o cabelo do rosto e enxuga
as mãos no avental.
Até sua brincadeira era coisa de gente grande. “Brincava de
casinha na beira da casa. Pegava o caco da tigela que quebrava ou da latinha e
colocava em um armarinho de tijolo, feito de bloco e tábua de madeira como
prateleira. Eu mesma que fazia”, conta orgulhosa e feliz.
Depois, vêm as
lembranças da adolescência, esbarrando-se naquilo que seu coração não quer
jamais esquecer: o amor de sua vida, Sebastião André. “No total, foram 69 anos
de convivência”, comenta com saudosismo e um pouco de tristeza. Nos últimos
quinze anos de vida de Sebastião, ele já não se lembrava de nada. Neste
momento, uma de suas noras aparece e Laurentina comenta sorrindo “Ela está me
tirando lá do fundo do mar para ficar me especulando”. Depois, volta a falar do marido com uma
tristeza no olhar, pois como o conheceu durante quase setenta anos, foi muito
angustiante para ela ver um homem tão forte e inteligente, como era seu
Sebastião, acabar a vida em cima de uma cama, sem lembrar das modas de viola
que, durante toda a vida, havia composto.
“Tudo
começou quando ele tinha uns setenta e cinco anos, depois que foi assaltado.
Caiu em depressão e não queria mais sair de casa. Não lembrava da netaiada, nem
dos filhos. O Bastião não aceitava
também a idade que tinha. Ele não era como eu, que aceito ser velha. Ele não
queria envelhecer”, fala já conformada.
E da senhora, ele também se esqueceu?,
questiono. “Não”, diz incisiva. “De mim
ele sempre lembrou”, diz orgulhosa.
Mexe na
testa, cruza as mãos. Pensa e conclui: “Perder a memória é coisa muito triste.
É esquecer da vida. Aí não tem nem mais vontade de viver mais”. Mas o maior
receio de Laurentina está em algo muito mais subjetivo que a própria memória. “Tenho
medo de esquecer das minhas rezas. Espero não perder nunca, se Deus quiser,
porque a reza é a defesa da gente e da nossa família”.
Hoje, a inspiração desse texto completa 89 anos. Se fosse me dado o direito de ter três pedidos na lâmpada mágica, eu pediria que ela vivesse mais 89, pra me encharcar com teu risinho simples, às vezes sem jeito, que vem toda manhã abrir a porta do quarto pra saber se ainda estou dormindo.
Deus e um bêbado retardado levaram embora minha outra avó, antes mesmo que eu a conhecesse. Cresci orfã de uma vó. E essa dona Tina me supriu, sendo vó duas vezes. E também sendo mãe, quando era preciso. E amiga todo o tempo.
Quero tuas histórias pra sempre. E pra sempre quero tuas memórias, inconfundíveis, assim como é também esse teu jeito de dizer "Vai com Deus e que Ele te acompanhe". Mesmo hoje não dando nome mais ao meu Deus, sinto que essa frase é que me rege, me guarda e ilumina.
Tina, Tina, minha, nossa Tina. Viva pra sempre!