22 de dezembro de 2013

Dos amores platônicos, os melhores foram os aristotélicos

Dos amores platônicos, ficou com os aristotélicos. Cansou de devanear sobre as cartas, fotos ou sorrisos nas entrelinhas. Queria mesmo era história completa. Com versos, traços e infinitas versões.

13 de dezembro de 2013

Transcendental

Amor de prosa fica, mas amor de poesia é transcendental.

Verbetempo

De tempo em tempo, uma nova palavra se faz viva nesse curto vocabulário. E, assim, ela vai aparecendo em cada pequena frase ou grande poema. A da vez é o tempo e todo o peso que esse verbete traz. Tempo de ir. Tempo de vir. Tempo de ficar. Tempo de estar. Tempo de mim no tempo. Tempo de ter tempo mesmo sem tempo.

Uma carta cheia de nós

Eu sempre quis. Projetei. Fiz sonhos e idealizei. EU deixou de ser apenas o pronome pessoal de um caso reto para se tornar também o nós de um caso oblíquo, mas cheio de certezas. Já nem quero dizer “Eu te amo”, se é NÓS que nos amamos. Se é nós que vamos correr por entre veias e células esse amor. Não sou apenas eu. Sou também tu. Com todo teu corpo e espírito, entrelaçando-se e se dissolvendo por entre o meu, o nosso. E seus olhos dizendo, a boca já dissolvendo a luxúria dos meus sentidos todos. E tudo sem aquela sensação de jogo vencido e acabado. Tudo com o ritmo de seu tempo soando e suando em meus poros. Movimento de notas musicais em uma escala infinita, de um amor também sem fim. (De um momento escorrendo por entre as pernas). Um toque harmonioso como é a formação das tríades maiores. Tão fartas, assim como tem sido meu amor por você.

Banho-maria

A primeira vez, ela cozinhou em banho-maria. A segunda, deixou queimar. A terceira, esqueceu-se até mesmo das cinzas. Abandonou os copos, os pratos e tudo que já não lhe descia goela a baixo. Naquele dia, já não havia mais indigestão.

Debaixo do tapete

Tentei fazer com que a poeira do tempo sucumbisse por debaixo do tapete da minha memória. Mas bastava esbarrar com a mente nesse chão, que eu logo recordava que ali tinha muito mais que chão, muito mais que tapete. Ali na verdade sucumbia um coração.

Entre nós, só laços

E, em meio ao caminho, a calçada estava quebrada. De um dia pro outro, ela se desmoronou. Virou terra outra vez, até nascer uma flor, que logo será morta por um tanto de concreto. E aquele estreito bar, já não existe mais. Ficou lá o primeiro olhar, o primeiro toque, o primeiro beijo. Mas, calma! Eis que a calçada de nossos caminhos pode, uma vez mais, se refazer e aquele bar se reabrir. Não será mais a mesma calçada, não serão mais os mesmos os donos de bar, não será mais o mesmo rio e muito menos os mesmos sapatos. Seremos outros. Renasceremos outros, mas seremos nós e, quem sabe, perceberemos que o que precisamos mesmo são de laços, não nós.

Saudade poética

Quanta saudade cabe em uma poesia, quando só se cabe poesia nessa saudade?

Apartheid-te

Apartheid-te, coração. Deixai de lado o que é só um lado. Abandonai os versos pretéritos e as sílabas deixadas no largo lago da memória. Apartheid-te, coração. Esquece a aura, a náusea, a vertigem. E te concentra na ação, não na cor, coração. Apartheid-te, coração. Separa o joio do trigo, a luva da mão, o sentido do verso, o olhar da atração. Apartheid-te, coração, que o outro lado da lua também já se apartou. Apartheid-te, coração.

Umbilical

Os exteriores passam, mas os interiores permanecem como a língua materna da gente.

pseudo-hai-kai

Estourei em miniaturas
uma imensidão

de ideias em vão

(Re)ações adversas

Fotos. Fotos. Milhões de fotos escorrendo pelos olhos. Milhões de palavras. palavras. palavras. Repetições. Poucas ações. Quem se é. Quem se foi. Quem iremos ser. Ter. Ter. Um coração bate choroso. Nesses dias, os olhos sempre deixam escapar umas águas sem jeito. E, de repente, lá estamos nós, outra vez, rodeados de urubus sentados no cume de uma árvore, na beira de uma estrada de ferro enferrujada. E quantas palavras. Não dizemos, não conseguimos exprimir. Espremer. Se mexer. Me aperto, me soco entre muitos socos de quem me soca e pede desculpas. Um tanto de histórias ficaram na rua de trás do saguão, do balcão, do vão que separa um plataforma da outra.

Concreto amor

te amo na realidade dos meus dias
infernais, alto astrais
te amo no chão que se faz de concreto, misturado aos meus pensamentos

surreais

16 de agosto de 2013

Em terra de trem, quem sabe guardar um palavra é rei

Um dia desses, no trem, encontrei uma senhorinha que ficou me fitando de forma ininterrupta por vários minutos. Enquanto eu escrevia, ela me observava curiosa. Eu não hesitei e lhe ofereci um sorriso. Em troca, ganhei sua confiança e também uma nova história. Os olhos, azuis e miúdos, pareciam estar sincronizados ao próprio tempo das palavras que soavam de sua boca já enrugada. Eram lentas as frases que se formavam entre o vácuo deixado de uma sílaba a outra. Mas o sorriso banguela transparecia a alma. E a alma, quando fala, grita mais alto que os trilhos de aço de um trem que nunca para.

E ainda instigada pela curiosidade que a aproximou de mim, perguntou sobre o que eu escrevia. Olhava meus rabiscos com o mesmo entusiasmo que tem uma criança ao se olhar no espelho. Falou que o máximo que sabia escrever era o nome. Aprendeu depois de moça, quando o marido operário já não podia ir às reuniões de escola do filho mais novo. O nome era tudo que dizia escrever. Mas havia, ali, muito mais palavras que aquelas exprimidas em um nome de tão poucas sílabas. Havia, ali, um tanto de palavras guardadas, que, agora, estavam sendo todas entregues a uma estranha no banco do trem.

É que as palavras, quando permanecem muito tempo escondidas atrás dos olhos, começam a criar raízes em quem as conserva. E ficam lá, só esperando a chance de uma hora saírem escorregando em lágrimas ou no voo de uma borboleta perdida em meio ao cinza que a circunda.

E aquele falatório sem fim contava de uns sonhos deixados no interior de uma cidade também de poucas palavras. De umas estradas longas que nem tinham placa. De umas gentes sem nome, mas que tinham palavras. As suas palavras. Os seus tempos, os seus sons e as suas imagens todas feitas de palavras.
A senhorinha, coitada, andava mesmo precisando se engasgar com as palavras, até achar uma forma de cuspi-las todas por um chão de concreto, de barro ou, simplesmente, de papel. Dizer em letras miúdas umas grandezas que vinham tomando seu coração adentro. Após um tempo, confessou que estava quase morrendo de palavras. E, por não escrevê-las, as mantinha junto de si, pois sabia que eram as poucas que ainda restavam da cidade de pouca prosa, das estradas sem placa e das gentes sem nome.

Eu andei um tempo guardando essas tão poucas palavras que ela me disse. Não por nada, mas não sabia muito bem como fazer ostra virar pérola. Minha vontade mesmo era a de mastigar cada uma delas, saborear até o talo. “Mas, minha filha, tem horas na vida que engolir a seco é o melhor remédio para as dores entaladas no coração”, foi o que me disse ela, enquanto a cortina de ferro daquele trem se abria mais uma vez, deixando lá a senhora de olhos azuis e rugas pelo rosto olhando para o vácuo que a separava de uma multidão que sequer imaginava o tamanho da riqueza que ela levava na bagagem. Em terra de trem, quem sabe guardar uma palavra é rei.

La Valse D’Urbana

E em meio a tantos vulcões rodopiando a mente, eis que o tempo se rendeu ao tempo de parar um tanto na Avenida Paulista para uma valsa em pleno sábado à noite. E, enquanto a polícia nos olhava do outro lado da rua, do lado de cá, o som de cada nota daquele acordeon se misturava às nossas mãos entrelaçadas, aos nossos giros sem ritmo, ao nosso ritmo sem ritos. E a simplicidade se fez tão grandiosa, que os olhos curiosos não cansavam de nos vigiar, enquanto dávamos giros de trezentos e sessenta graus, invadindo o asfalto, os prédios e as gentes de alma pequena. Causávamos tumultos, batidas de carros e murmúrios de toda natureza. Lá fora, o caos. Cá dentro, apenas a harmonia das notas de um acordeon, em pleno fervor de uma Avenida Paulista.

Quem conta um conto...

É preciso se desacostumar do costume alheio. Voltar ao ponto zero, mais uma vez. Afinal, é necessário estar neutro para conseguir somar novas contas ao seu próprio conto.

Desnarcisando

Tem horas que nossos espelhos nos viciam tanto, que é melhor quebrá-los. Encontrar novos espelhos pra nos espelharmos. E assim ocorre também com a bolha que nos circunda. E quando nos vemos tendo que estourá-la, a mente dói, o corpo sente. É preciso estar longe de si próprio e de toda sua origem pra saber o quanto precisa disso. Mas estar longe é necessário. Não se constrói o novo sem lembrar do velho, mas também não se modifica o novo, se apenas utilizarmos as referências do velho.

Eu (não) quero C, eu quero star

Hoje eu sou objeto de estudo.
Um quase ser analisado em todas as dimensões.
Me desmiuçaram dos pés à cabeça, numa hipótese confusa dizendo que, antes deles, eu não era.
Comecei até mesmo a aparecer no jornal, na nova vírgula decimal que faz de mim uma porcentagem constitucional.
E, em meio a tantas hipóteses, chegaram à conclusão que meu nome agora é C.
Como C, bebo C, ouço e visto C.
Na boa?

Eu não quero C, eu quero star!

Esse meu olhar de bala

E meu olhar, agora, é só uma câmera fotográfica assistindo ao longe mais um corpo passando. E a minha mente se confunde com os livros na estante e com as multidões correndo de balas, de gás, e de outras gentes. Busco de forma incessante uma saída, uma forma de dizer chega! de dizer basta! mas o meu grito sozinho, é só uma sílaba flutuando num ar sufocante, que, pra ser frase inteira, precisa de mais, de muitos, de todos. Recuo. Avanço. Recuo outra vez. Lembro dos livros, das frases de paz, a não-violência, a firmeza permanente. A confusão remonta inteira em cima de mim. Pra onde é que estamos indo? E será que este é mesmo o caminho? E se a gente tentasse fazer diferente? Mas e se ninguém nos olhar, mais uma vez? Meu grito sozinho é só uma sílaba, recordo. E aí, numa rua sem saída, eu me encurralo em minhas ideologias. Se não tenho a melhor via, junto-me aos demais. 'Morremos no caminho, mas não a sós'. (inspirado dolorosamente nas manifestações de junho de 2013).  

Das presenças tão ausentes

Acabo de ver uma foto de Dominguinhos acompanhada de uma frase dita por ele e Renato Teixeira: "Os verdadeiros amigos sabem entender o silêncio e manter a presença, mesmo quando ausentes". Soa clichê botar uma frase do homem assim, logo após sua morte, mas é que ela faz tanto sentido, pois, assim como, agora, há uma sanfona e uma legião de fãs silenciados, esse mesmo silêncio é que nos levará às lembranças, ao sorriso dado, ao abraço apertado, ao até logo que não chegou. Andei pensando, esses dias, sobre a tal da "amizade verdadeira". Deparei-me com um tanto de saudades de conversas que não são mais as mesmas, de expressões que já não fazem mais sentido. Vi fotos de gente que, hoje, já não reconheceria passando na rua. São rostos que já riram ou choraram ao meu lado. Já me juraram amizade eterna. Seria muito injusto dizer que vocês todos, hoje tão distantes, não são amigos verdadeiros. Há dificuldade bastante em compreender que as relações afetivas que vivenciamos não são nossas propriedades. Muitos momentos da vida nos permitem aproximações e fidelidades incomparáveis. Mas tempo e espaço também são unidades em constante mutação. É difícil compreender que tanto assunto acabou se transformando em um breve "olá, como vai, tudo bem?". É preciso domar a alma para aceitar a palavra ex-amigo. Eu aceito até ex-namorado, mas ex-amigo é palavra que desce rasgando goela abaixo. Aí tu pensa em vomitar todas as histórias ou confidências, em um gesto de vingança, já que não possui mais aquilo que outrora ninguém lhe tirava. Agora, assim como a frase de Dominguinhos, restam apenas o silêncio, a ausência e a certeza de que todos aqueles que passaram estão presentes de alguma forma.

D-E-Z

Cem (dez)culpas
para as (Dez)ilusões de um 
(Dez)amor

Contra Tempo

O que me entristece é que o tempo vem me ocupando tanto tempo, que nem tenho tido tempo de ter tempo.

Oração da revolta

Limar as regras e derrubar os muros. Senhor, se estás aí, faça de mim um ser ilegal, mas nunca imoral. Que eu cometa ilegalidades nesse sistema irreal. A lei, aqui, só serve ao mané que se diz o tal. Que eu abandone os protocolos, jogue fora as etiquetas e os seres de alma tão pequena. Amém.

19 de julho de 2013

Das coisas mais belas, eu fico com as reais

Ela vivia lendo contos de fada por aí: no trem, na padaria, na festa de sábado à noite. Ela vivia escrevendo cartas a um além, que não chegava nem mesmo a sair das paredes de seu próprio quarto. E, a cada nova desilusão, ligava o som nas alturas e minguava as lágrimas num tanto de papel cortado. E ditava as regras, antes mesmo de vivenciar qualquer momento mais real, mais verdadeiro. E alma gêmea, pra ela, era um espelho de ponta cabeça, com traços e versos de seu reverso. Hoje, os versos são quadros na parede, de um traço que não é o seu. Nem os sons ou letras que, agora, se dispõe a ouvir e ler. Descobriu que conto de fada não tem fada alguma, mas uma realidade infinita em olhos que brilham.

27 de abril de 2013

Histórias de trem: o vendedor ambulante que era do exército na Ditadura Militar

Estava eu em mais uma manhã de sol indo trabalhar. Como de costume, estava atrasada e, pra me ajudar ainda mais, o trem também. Só pra variar um pouco nessa minha relação amorosa, quase sexual, com a CPTM. Entrei correndo e ainda consegui um lugarzinho pra sentar. Vi uma moça com uma cara azeda de quem já não queria mais ouvir a história que vinha do seu lado direito. Isso me intrigou. Ela disfarçava, fingia ouvir, mas a real era que tava de saco cheio. Bom pra mim, que logo atentei ainda mais meus ouvidos.

Do lado direito da moça estava sentado um senhor negro, alto e de olhos verdes. Mesmo beirando seus setenta e poucos anos, os traços não negavam sua beleza. A qual pude comprovar depois, quando ele sacou de sua carteira uma foto 3x4, de um moço de 18 anos com uniforme militar.

Há quarenta anos, ele toma o trem em Francisco Morato e vai até Santo André (no ABC) vender uma maquininha que tira das roupas aquelas bolinhas insuportáveis, que fazem da sua calça preta nova, a peça mais velha do seu vestuário.  "Lá vende mais", ele comenta. E é desse jeito, que conseguiu sustentar sua família por todo esse tempo. Pagou o INSS e já se aposentou. Ele se autodenomina como autônomo. Mas mesmo assim não deixa de trabalhar.

Ele estava vestido normalmente, mas na praça onde fica concentrado, ele se fantasia todo e usa todos seus argumentos para atrair a clientela. Não falta gente pra comprar, afirma sorrindo, enquanto mostra na mochila   a roupa de palhaço.

Mas nem sempre foi assim. O senhor, do qual não me recordo mais o nome, para um segundo e se remota a um tempo no qual nem mesmo o Brasil quer mais se lembrar: a Ditadura Militar. "Vou te contar a minha história de moço", começou. Ele fazia parte do exército nesse período e sua função era acabar com as piquetes de jovens que tinham a mesma idade que ele. "Eu era pau mandado, não fazia aquilo porque queria".

Hoje, passados tantos anos, o senhor se arrepende profundamente de, indiretamente, ter feito parte da Ditadura no Brasil e afirma que ela foi muito ruim.

Estação Luz. "Me passa seu telefone?", pergunto empolgada. E os olhos verdes me respondem que não. Eu não insisto. A porta do trem se fecha e acaba ali mais um capítulo da Linha 7-Rubi.

Cá pra Nós agradece sua leitura!

Próximo capítulo: a vidente!

Histórias de trem, capítulo de hoje: o homem traído

Cheguei atrasada na estação. Avistei, ao longe, um banco vazio. Eu tinha apenas a uma hora e quinze do trajeto para saber tudo sobre Chia e Ômega-3 (é!). Sentei, quando botei a mão na revista, que levava um belo de um salmão na capa, uma voz ecoou em meu ombro. "Comer peixe é muito bom, é a melhor coisa pra saúde". Concordei com a cabeça e a voz prosseguiu. "Sabe, minha vizinha curou um câncer comendo peixe todos os dias. O médico manda a gente comer peixe, sabe?".
Nisso, o trem estacionou na estação e a voz me acompanhou vagão adentro. Tinha nome, endereços e histórias. Dessa vez, quem vinha compor mais um capítulo desse divã era o Seu Antônio. Um negro de mais ou menos um metro e setenta, vestia calça social, camisa branca e levava consigo uma maleta. Eis que o peixe da capa da revista fora apenas o gancho de uma conversa que duraria sete léguas de estações.
Seu Antônio estava voltando de uma de suas casas de aluguel, em Perus. Além dessa, tinha também uma outra num bairro que já não me lembro o nome. "Eu sou um homem bem sucedido, eu tenho dinheiro, faço empreiteira pro Pão de Açúcar, você conhece o Pão de Açúcar, né. Tenho muita gente trabalhando comigo", ia dizendo, enquanto o trem nos balançava de um jeito que parecia que jogaria fora, caso não fossem suas janelas e portas pichadas.
A vida do homem que gosta de comer peixes começa a esquentar quando ele ainda tinha 19 anos e começou a trabalhar como pedreiro para grandes empreiteiras. Nessa época, Antônio diz que era um homem bonitão, sempre vivia arrumado e costumava sair para dançar. Mas foi aos trinta e poucos anos, que o homem teve uma grande reviravolta. Trabalhava numa obra no Brás, onde havia um restaurante bem em frente com comida barata. Foi lá que antônio conheceu a garçonete que, quinze anos mais moça, iria se tornar a mãe de seus filhos.
Os dois, cristãos protestantes, logo se casaram em uma Congregação. Os filhos cresceram e, certo dia, a mulher de Antônio resolveu mudar de igreja. Ele achou estranho, mas aceitou. "Era gosto dela, né". Passou a usar batom e vestir calça comprida. Agora, ela não queria mais saber de ser só a mãe-mulher-dona de casa. Queria ser a mãe-mulher-dona-de-casa-e-trabalhar-fora. E foi. "Mulher minha não precisa trabalhar. Não faltava nada pra ela, não sei por que isso".
Eis que a dona foi viver novas vidas, aquela que, aos quinze, lhe fora roubada por uma paixão. Até que um dia resolveu ir embora. Arrumou todas as lembranças dentro de uma mala, amassou bem para caber tudo e partiu. Os filhos, já tudo criado, ficaram com o pai. "Eu tenho uma família já formada advogada. Eu não sei o que aconteceu com a cabeça da minha mulher, era tão direita".
O ex-marido ficou tão desesperado que um dia sentiu até o cheiro dos rastros da mulher. Havia ido comprar um terno, para reunião que teria pra fechar contrato com uma empreiteira. Resolveu descer no bairro da Lapa, ver se achava algo mais barato. Encontrou. Depois, quis dar uma volta no shopping e comer alguma coisa na praça de alimentação. Pra quê? Quando ia pegar seu lanche, deparou-se com a amada toda em carinhos e afagos com um novo amor, o porteiro do prédio onde agora reside.
"Eu tive vontade de pegar uma faca e...você acredita nessa situação? Tava parecendo uma mocinha lá, toda toda, você acredita?", contava, enquanto passava a mão no rosto, como se a pressão arterial fosse explodir só de lembrar o fato.
"Você sabe que a mulher me trocou por um homem que ganha mil reais por mês? Você acredita? Mil reais é o preço de uma casa de aluguel minha. Eu tenho é pena dela, ela que vai sofrer", dizia, como diz a criança mimada, inconformada por alguém trocar sua moto motorizada por um carrinho de rolimã, sem pensar que esse último, improvisado com madeira simples e rodinha emprestada, pode fazer alguém mais feliz que o brinquedo caro.
Nesse dia, ouvi com atenção, sem dar pitacos. Eu não mudaria a dor, muito menos os dogmas que já haviam criado raízes naquele senhor. Descemos na Barra Funda. Ele deu adeus, eu recomendei Ômega-3 pro coração.

(Cá pra Nós nos trens da CPTM)

Ponto Neutro

É preciso se desacostumar do costume alheio. Voltar ao ponto zero, mais uma vez. Afinal, é necessário estar neutro para conseguir somar novas contas ao seu próprio conto.

4 de abril de 2013

Oba, lá vem o vendedor ambulante!

Vendedor ambulante entra e joga sua mochila nos pés de um passageiro. Os "tiras" chegam e descobrem. Descem do vagão. Eu olho relembrando de quando eu ainda era criança e vi um desses guardinhas pisoteando o salgadinho de uma vendedora ilegal. As cortinas do teatro da vida real se fecham. Eu viro e digo que o comércio ilegal é muito legal quando eu tô com fome. A senhora ao lado vira e diz:

- Seu coração é pura compaixão.

Eu viro e retruco, sem ao menos pensar:

- Não! Minha mente que é pura inquietação!

3 de abril de 2013

'Quem rezar por mim, que o faça sambando'


Caminhava apressada para chegar ao samba no Bixiga. No caminho, avistou as portas entreabertas de uma igreja que nunca havia entrado. Antes mesmo de pensar em entrar, foi barrada por um vendedor de rosas. Um negro alto com uma vista comprometida. Uma das janelas da alma estava totalmente coberta por uma camada esbranquiçada. Dizia estar com fome e, por isso, queria vender cinco flores murchas por vinte reais. A moça, solidária, desembolsou dez. Ele titubeou, tentou até negociar, mas não havia o que reclamar. Tomou os dez reais nas mãos e, em troca, deu uma rosa com pétalas caindo, enquanto dizia que Nossa Senhora a protegeria. Foi embora, enquanto a moça entrava naquele grande templo, todo ornamentado. Olhou todos os detalhes e pensou no tanto de dinheiro que fora deixado praquela arquitetura. Botou os joelhos no banco de madeira, como há muito não fazia. Afinal de contas, não acreditava mais em Deus. Mas isso não a impediu de agradecer. Só não sentia mais a necessidade de pedir perdão. Não via pecado em não acreditar em Deus, muito menos em não seguir os mandamentos. Continuou ajoelhada e pediu apenas pela energia, essa que envolve gente, bicho, planta e até inseto. E ali ficou, aguardando o momento da hóstia chegar. Pelas regras, não podia tomar o corpo de Cristo, já que não chegou no início da missa. Incrível como ainda lembrava do ritual. 'O corpo de Cristo'. 'Amém'. Tomou, ajoelhou mais uma vez. Mas diferentemente doutros tempos, não esperou o 'Vai em paz e que o Senhor voz acompanhe'. Ainda na igreja, lembrou do destino inicial e pensou na frase de um poeta do povo. "Quer saber?", disse a si mesma, "quem quiser rezar por mim, que o faça sambando!". Nesse dia, sambou tão intensamente, que até perdeu o último trem das onze.

Histórias de trem, capítulo de hoje: triângulo amoroso

Eu tava sentadinha no único canto que me restava naquele latifúndio do vagão. Comia, tranquila, meu amendoim rosa, quando de repente ouço uma história que me fez até levantar. Um homem, cheio de sacolas, falava com duas mulheres. O sotaque arrastado denunciava que vinha da cidade maravilhosa. Ele, um moço baixo, vestindo uma camisa do corinthians, um boné preto, bermuda e tênis. Elas, umas curiosas, assim como eu. Peguei o trem andando, e ainda encostei na janelinha. Cheguei no momento que ele dizia que a Maria e a Paula (pasmem!) dormiam com ele na mesma cama e o amor dos três, ah, isso é lindo. Pois, é. O rapaz, que nem sei o nome, vive há trinta e dois anos um tipo de amor que eu pensava que existia só nos recôncavos mais côncavos desse Brasil. Mas eis que ali no município ao lado, em Franco da Rocha, o homem vive na mesma casa com suas duas esposas. Tem três filhos com a Maria e dois com Paula. O homem diz que nunca traiu nenhuma das duas. O fato de transar com duas pessoas o satisfaz de forma mais completa. É nessa hora que eu faço a pergunta clichê que não quer calar. E se uma delas resolve ter outro marido? Tudo bem, tudo lindo, e complementa - vi um dia desses uma mulher de um país, esqueci o nome, que tinha dois maridos. E noutro país, vi um homem com seis esposas. Já vi muita história de homem com duas mulheres, mas que não aceitam ela ter um segundo marido. "Ah, o que falta pra esses homens é informação". Sua história dá um livro. Mas vocês são o que, jornalista, repórter?, questiona preocupado. Não, moço. Eu só sou do trem mesmo. Dou tchau, enquanto o maquinista informa que chegamos a Estação Perus, chegando também ao fim mais um capítulo da Linha 7-Rubi. Amanhã tem mais, tem, sim senhor!

21 de fevereiro de 2013

É sábado de carnaval



O último trem sai à uma da madrugada. É sábado de carnaval. No vagão, um crente entoa seus cânticos. Do outro lado, um menino de boné apoia seus pés no banco e adormece.

Depois de uma hora, o ruído do freio anuncia a próxima parada. As portas se abrem, assim como as cortinas de um teatro velho. Guardas esperam ansiosos pela saída do último passageiro. É sábado de carnaval. 

As escadas, sempre tão cheias de pés, bundas e cotovelos, agora estão esvaziadas. No ponto de ônibus, uma meia dúzia de almas esperam.

Do lado direito, três moças conversam alegres. Uma chega e grita, ainda da escadaria, "gata, onde você vai? Cumprimentam-se. "Caraio, você aqui". Em cinco minutos, são surpreendidas com uma carona. É sábado de carnaval.

"Opa, parceiro", chega o bêbado, enquanto os garotos decidem se vão ou não ao funk da loira. Mas o bêbado não se dá conta e continua seu falatório sem fim. "Ae, irmão, não leva a mal não, mas cê pode fazer um olho aí, pá gente trocar uma ideia no particular?". É sábado de carnaval.

O bêbado não responde. Se curva para o único cachorro que passa. "Ô, negão". Alisa sua cabeça. E os dois, bêbado e cão, seguem próximo à barraca do churrasquinho de gato. O cão para, como quem pede por um pedaço do cheiro da carne. Já o bêbado, senta-se ao lado do cão, bota suas mãos e joelhos no chão. E ali, páreo a páreo com o cão, foi que o bêbado encontrou seu único consolo.

É sábado de carnaval, mas um homem vai amanhecer abraçado a um cão. Enquanto todos os outros que esperam sobem no último destino dessa noite: Cemitério Perus - 8015.

Afinal, é sábado de carnaval, mas a vida continua.

Nós que aqui estamos, por Godot esperamos

Eu não sei se sentem isso, mas sempre tenho a impressão que, daqui a cinco minutos, algo extraordinário vai acontecer. Algo que mude o fio da meada, que traga um 'num sei o quê', misturado a 'num sei quê lá'! Aí é que, nesses momentos, eu percebo que a gente tem que ser menos taxista na vida. Deixar de esperar o passageiro chegar, e sair por aí, como quem num quer nada. "Afinal, o importante é estar na roda, que mesmo parado, você continua em movimento.

1 de fevereiro de 2013

Primeiro dia de aula é inesquecível

Primeiro dia de aula. 1ª série. Minha lancheira era roxa, e o cheiro do pão com presunto e queijo, preparado por minha mãe, ainda vive na lembrança. Dalí a pouco, toca o sinal, ela vai embora e eu percebo um medo crescendo de repente.

Olho ao redor. Um tanto de crianças pulando. "Será que eles já se conhecem? Só eu que não conheço ninguém?". Menina tola. Era o pessoal do 2º ano. Senti que, ali, naquela escola com meninos grandes, eu teria que aprender a me virar sozinha.

1º D. Professora Ivône. Era uma mulher de estatura baixa. Nem gorda nem magra. Cabelos negros e lisos até a cintura. Parecia uma índia. Uma índia evangélica, logo percebi, pela saia que levava até os joelhos e pelo modo como falava de Deus nas aulas.

Eu adorava ir à escola e gostava também da Prô Ivône. Ela sempre elogiava meus trabalhos e, de sobra, ainda escrevia um comentário em todos eles - Parabéns, ficou lindo, princesa!

Eu achava que aquilo era só comigo, até ver o mesmo comentário nos trabalhos dos colegas. Um dia, levei um presentinho pra Prô, um ursinho. Ela adorou. Mas passado algum tempo, ela começou a dar algumas coisas de brinde para as crianças. E, poxa vida, ela deu o meu presente para a Daniela. Uma menina que sentava na primeira fileira do canto esquerdo. Fiquei chateada. Contei a minha mãe. Aí ela explicou que não importava pra quem ela desse o presente, pois a professora índia iria continuar  gostando de mim da mesma forma.

Demorei um tanto de tempo  pra entender esse dinamismo das coisas, e como nos sentimos proprietários até daquilo que damos. Passados catorze anos, eu compreendi que nem tudo que você doa permanece igual. O efeito de transformação excede àquele cronometrado por seus sentidos e sentimentos. Hoje em dia, enconro a prô Ivône pelas ruas, ela já com seus 60 e poucos anos, eu com meus 21. Engraçado, ela continua me chamando de "minha princesinha", mas desconfio que nem se lembra do meu nome.

6 de janeiro de 2013

Folia de Reis no sítio do vô Zé


Dia de Reis faz eu me lembrar da primeira vez que fui ao Paraná, visitar meu avô, Seu Zé. Eu tinha seis anos, ele dois violões. Contou que havia tocado no 'Dia de Reis'. E que, todos os anos, repetia a mesma façanha, desde que era moço novo.

Aproveitou e me mostrou como é que se tocava. Pegou seu violão da cor do céu e, naquele momento, enquanto seus dedos se deslizavam pelo braço do instrumento, eu senti, pela primeira vez, vontade de também fazer sair de meus dedos alguma música.

Nesse dia, ele disse que aqueles dois violões eram meus. "Herança minha pra tu, menina!". Passados seis meses de minha visita, ele veio morar aqui em São Paulo, sem a mulher, e sem os violões. Um dia, voltou pra buscar a mulher, dona Nair. Mas, mesmo depois disso, vivia dizendo que precisava voltar para sua terra.

Ninguém entendia muito bem essa vontade de voltar, já que aqui estavam todos seus filhos. Foi aí que, no dia 7 de dezembro de 1999, enquanto ele se preparava para mais uma viagem ao Paraná, ele disse à minha mãe que voltaria à sua terra prometida e pediu a ela que o perdoasse de qualquer coisa. Gente do interior sempre diz essa frase quando tá indo embora da casa do parente. E gente do interior também costuma dar muito valor pra terra que pisa e planta.

Noutro dia, já com as passagens em mãos, Seu Zé acordou meio cabisbaixo. Pediu a dona Nair que preparasse um chá. "Deve ser ansiedade pra viajá, Zé", pensou a senhora. Deitou-se um pouco, já que a viagem seria só à noite. Aí, que a viagem se adiantou tanto, que seu Zé não aguentou mais de saudades de seus violões, e naquela tarde, após o almoço, foi de vez para sua terra prometida, deixando mulher, filhos e netos.

Não sei explicar o porquê, mas eu não consegui ir ao seu velório. Pra mim, vô Zé tá lá em seu sítio, trocando os dedos em um violão azul, me esperando chegar só para entregar sua herança.

4 de janeiro de 2013

Um novo calendário



Tem horas que as palavras ficam coçando tanto nas pontas dos dedos, que parece que vão gerar chagas. E, quanto mais você coça, mais quer coçar, coçar e coçar. Até que uma hora surgem umas feridas marcando tanto a pele, que nunca mais saem, assim como há de acontecer com as próprias palavras.

Por isso, é preciso não perder o time. Não esquecer o verbo e não abandonar o ritmo dos versos. Senão, a gente morre e a palavra morre com a gente, sem mesmo desflorar.

Aprendi, no ano passado, que não existe mais um ano de vida. Existe a vida. Que o ano, o tempo e o espaço sou eu que crio. Então, eu desejo a mim e ao tanto de gente que tiver paciência de ler isso, que o próximo ano traga muitos espaços. Sejam eles apertados ou frouxos. Sem crise, o que importa é ir além de si próprio, mesmo que seja de forma apequenada, curta. Transcender seu espaço em novos é também uma forma de se alongar, mesmo permanecendo dentro de seu próprio perímetro. 

Que o novo calendário traga também muitos tempos, pra você entender que, se a natureza tem quatro estações, você tem, no mínimo, o dobro. E isso é bom. Se nem as frutas nascem durante todo o ano, por que você haveria de estar exatamente do mesmo modo que esteve ontem?

No mais, desejo que, em 2013, nos cruzemos mais por aí, tomemos uma no boteco da esquina, joguemos conversa fora e também risadas e lamentações.