27 de abril de 2013

Histórias de trem: o vendedor ambulante que era do exército na Ditadura Militar

Estava eu em mais uma manhã de sol indo trabalhar. Como de costume, estava atrasada e, pra me ajudar ainda mais, o trem também. Só pra variar um pouco nessa minha relação amorosa, quase sexual, com a CPTM. Entrei correndo e ainda consegui um lugarzinho pra sentar. Vi uma moça com uma cara azeda de quem já não queria mais ouvir a história que vinha do seu lado direito. Isso me intrigou. Ela disfarçava, fingia ouvir, mas a real era que tava de saco cheio. Bom pra mim, que logo atentei ainda mais meus ouvidos.

Do lado direito da moça estava sentado um senhor negro, alto e de olhos verdes. Mesmo beirando seus setenta e poucos anos, os traços não negavam sua beleza. A qual pude comprovar depois, quando ele sacou de sua carteira uma foto 3x4, de um moço de 18 anos com uniforme militar.

Há quarenta anos, ele toma o trem em Francisco Morato e vai até Santo André (no ABC) vender uma maquininha que tira das roupas aquelas bolinhas insuportáveis, que fazem da sua calça preta nova, a peça mais velha do seu vestuário.  "Lá vende mais", ele comenta. E é desse jeito, que conseguiu sustentar sua família por todo esse tempo. Pagou o INSS e já se aposentou. Ele se autodenomina como autônomo. Mas mesmo assim não deixa de trabalhar.

Ele estava vestido normalmente, mas na praça onde fica concentrado, ele se fantasia todo e usa todos seus argumentos para atrair a clientela. Não falta gente pra comprar, afirma sorrindo, enquanto mostra na mochila   a roupa de palhaço.

Mas nem sempre foi assim. O senhor, do qual não me recordo mais o nome, para um segundo e se remota a um tempo no qual nem mesmo o Brasil quer mais se lembrar: a Ditadura Militar. "Vou te contar a minha história de moço", começou. Ele fazia parte do exército nesse período e sua função era acabar com as piquetes de jovens que tinham a mesma idade que ele. "Eu era pau mandado, não fazia aquilo porque queria".

Hoje, passados tantos anos, o senhor se arrepende profundamente de, indiretamente, ter feito parte da Ditadura no Brasil e afirma que ela foi muito ruim.

Estação Luz. "Me passa seu telefone?", pergunto empolgada. E os olhos verdes me respondem que não. Eu não insisto. A porta do trem se fecha e acaba ali mais um capítulo da Linha 7-Rubi.

Cá pra Nós agradece sua leitura!

Próximo capítulo: a vidente!

Histórias de trem, capítulo de hoje: o homem traído

Cheguei atrasada na estação. Avistei, ao longe, um banco vazio. Eu tinha apenas a uma hora e quinze do trajeto para saber tudo sobre Chia e Ômega-3 (é!). Sentei, quando botei a mão na revista, que levava um belo de um salmão na capa, uma voz ecoou em meu ombro. "Comer peixe é muito bom, é a melhor coisa pra saúde". Concordei com a cabeça e a voz prosseguiu. "Sabe, minha vizinha curou um câncer comendo peixe todos os dias. O médico manda a gente comer peixe, sabe?".
Nisso, o trem estacionou na estação e a voz me acompanhou vagão adentro. Tinha nome, endereços e histórias. Dessa vez, quem vinha compor mais um capítulo desse divã era o Seu Antônio. Um negro de mais ou menos um metro e setenta, vestia calça social, camisa branca e levava consigo uma maleta. Eis que o peixe da capa da revista fora apenas o gancho de uma conversa que duraria sete léguas de estações.
Seu Antônio estava voltando de uma de suas casas de aluguel, em Perus. Além dessa, tinha também uma outra num bairro que já não me lembro o nome. "Eu sou um homem bem sucedido, eu tenho dinheiro, faço empreiteira pro Pão de Açúcar, você conhece o Pão de Açúcar, né. Tenho muita gente trabalhando comigo", ia dizendo, enquanto o trem nos balançava de um jeito que parecia que jogaria fora, caso não fossem suas janelas e portas pichadas.
A vida do homem que gosta de comer peixes começa a esquentar quando ele ainda tinha 19 anos e começou a trabalhar como pedreiro para grandes empreiteiras. Nessa época, Antônio diz que era um homem bonitão, sempre vivia arrumado e costumava sair para dançar. Mas foi aos trinta e poucos anos, que o homem teve uma grande reviravolta. Trabalhava numa obra no Brás, onde havia um restaurante bem em frente com comida barata. Foi lá que antônio conheceu a garçonete que, quinze anos mais moça, iria se tornar a mãe de seus filhos.
Os dois, cristãos protestantes, logo se casaram em uma Congregação. Os filhos cresceram e, certo dia, a mulher de Antônio resolveu mudar de igreja. Ele achou estranho, mas aceitou. "Era gosto dela, né". Passou a usar batom e vestir calça comprida. Agora, ela não queria mais saber de ser só a mãe-mulher-dona de casa. Queria ser a mãe-mulher-dona-de-casa-e-trabalhar-fora. E foi. "Mulher minha não precisa trabalhar. Não faltava nada pra ela, não sei por que isso".
Eis que a dona foi viver novas vidas, aquela que, aos quinze, lhe fora roubada por uma paixão. Até que um dia resolveu ir embora. Arrumou todas as lembranças dentro de uma mala, amassou bem para caber tudo e partiu. Os filhos, já tudo criado, ficaram com o pai. "Eu tenho uma família já formada advogada. Eu não sei o que aconteceu com a cabeça da minha mulher, era tão direita".
O ex-marido ficou tão desesperado que um dia sentiu até o cheiro dos rastros da mulher. Havia ido comprar um terno, para reunião que teria pra fechar contrato com uma empreiteira. Resolveu descer no bairro da Lapa, ver se achava algo mais barato. Encontrou. Depois, quis dar uma volta no shopping e comer alguma coisa na praça de alimentação. Pra quê? Quando ia pegar seu lanche, deparou-se com a amada toda em carinhos e afagos com um novo amor, o porteiro do prédio onde agora reside.
"Eu tive vontade de pegar uma faca e...você acredita nessa situação? Tava parecendo uma mocinha lá, toda toda, você acredita?", contava, enquanto passava a mão no rosto, como se a pressão arterial fosse explodir só de lembrar o fato.
"Você sabe que a mulher me trocou por um homem que ganha mil reais por mês? Você acredita? Mil reais é o preço de uma casa de aluguel minha. Eu tenho é pena dela, ela que vai sofrer", dizia, como diz a criança mimada, inconformada por alguém trocar sua moto motorizada por um carrinho de rolimã, sem pensar que esse último, improvisado com madeira simples e rodinha emprestada, pode fazer alguém mais feliz que o brinquedo caro.
Nesse dia, ouvi com atenção, sem dar pitacos. Eu não mudaria a dor, muito menos os dogmas que já haviam criado raízes naquele senhor. Descemos na Barra Funda. Ele deu adeus, eu recomendei Ômega-3 pro coração.

(Cá pra Nós nos trens da CPTM)

Ponto Neutro

É preciso se desacostumar do costume alheio. Voltar ao ponto zero, mais uma vez. Afinal, é necessário estar neutro para conseguir somar novas contas ao seu próprio conto.

4 de abril de 2013

Oba, lá vem o vendedor ambulante!

Vendedor ambulante entra e joga sua mochila nos pés de um passageiro. Os "tiras" chegam e descobrem. Descem do vagão. Eu olho relembrando de quando eu ainda era criança e vi um desses guardinhas pisoteando o salgadinho de uma vendedora ilegal. As cortinas do teatro da vida real se fecham. Eu viro e digo que o comércio ilegal é muito legal quando eu tô com fome. A senhora ao lado vira e diz:

- Seu coração é pura compaixão.

Eu viro e retruco, sem ao menos pensar:

- Não! Minha mente que é pura inquietação!

3 de abril de 2013

'Quem rezar por mim, que o faça sambando'


Caminhava apressada para chegar ao samba no Bixiga. No caminho, avistou as portas entreabertas de uma igreja que nunca havia entrado. Antes mesmo de pensar em entrar, foi barrada por um vendedor de rosas. Um negro alto com uma vista comprometida. Uma das janelas da alma estava totalmente coberta por uma camada esbranquiçada. Dizia estar com fome e, por isso, queria vender cinco flores murchas por vinte reais. A moça, solidária, desembolsou dez. Ele titubeou, tentou até negociar, mas não havia o que reclamar. Tomou os dez reais nas mãos e, em troca, deu uma rosa com pétalas caindo, enquanto dizia que Nossa Senhora a protegeria. Foi embora, enquanto a moça entrava naquele grande templo, todo ornamentado. Olhou todos os detalhes e pensou no tanto de dinheiro que fora deixado praquela arquitetura. Botou os joelhos no banco de madeira, como há muito não fazia. Afinal de contas, não acreditava mais em Deus. Mas isso não a impediu de agradecer. Só não sentia mais a necessidade de pedir perdão. Não via pecado em não acreditar em Deus, muito menos em não seguir os mandamentos. Continuou ajoelhada e pediu apenas pela energia, essa que envolve gente, bicho, planta e até inseto. E ali ficou, aguardando o momento da hóstia chegar. Pelas regras, não podia tomar o corpo de Cristo, já que não chegou no início da missa. Incrível como ainda lembrava do ritual. 'O corpo de Cristo'. 'Amém'. Tomou, ajoelhou mais uma vez. Mas diferentemente doutros tempos, não esperou o 'Vai em paz e que o Senhor voz acompanhe'. Ainda na igreja, lembrou do destino inicial e pensou na frase de um poeta do povo. "Quer saber?", disse a si mesma, "quem quiser rezar por mim, que o faça sambando!". Nesse dia, sambou tão intensamente, que até perdeu o último trem das onze.

Histórias de trem, capítulo de hoje: triângulo amoroso

Eu tava sentadinha no único canto que me restava naquele latifúndio do vagão. Comia, tranquila, meu amendoim rosa, quando de repente ouço uma história que me fez até levantar. Um homem, cheio de sacolas, falava com duas mulheres. O sotaque arrastado denunciava que vinha da cidade maravilhosa. Ele, um moço baixo, vestindo uma camisa do corinthians, um boné preto, bermuda e tênis. Elas, umas curiosas, assim como eu. Peguei o trem andando, e ainda encostei na janelinha. Cheguei no momento que ele dizia que a Maria e a Paula (pasmem!) dormiam com ele na mesma cama e o amor dos três, ah, isso é lindo. Pois, é. O rapaz, que nem sei o nome, vive há trinta e dois anos um tipo de amor que eu pensava que existia só nos recôncavos mais côncavos desse Brasil. Mas eis que ali no município ao lado, em Franco da Rocha, o homem vive na mesma casa com suas duas esposas. Tem três filhos com a Maria e dois com Paula. O homem diz que nunca traiu nenhuma das duas. O fato de transar com duas pessoas o satisfaz de forma mais completa. É nessa hora que eu faço a pergunta clichê que não quer calar. E se uma delas resolve ter outro marido? Tudo bem, tudo lindo, e complementa - vi um dia desses uma mulher de um país, esqueci o nome, que tinha dois maridos. E noutro país, vi um homem com seis esposas. Já vi muita história de homem com duas mulheres, mas que não aceitam ela ter um segundo marido. "Ah, o que falta pra esses homens é informação". Sua história dá um livro. Mas vocês são o que, jornalista, repórter?, questiona preocupado. Não, moço. Eu só sou do trem mesmo. Dou tchau, enquanto o maquinista informa que chegamos a Estação Perus, chegando também ao fim mais um capítulo da Linha 7-Rubi. Amanhã tem mais, tem, sim senhor!