Um dia desses, no trem, encontrei uma senhorinha que ficou
me fitando de forma ininterrupta por vários minutos. Enquanto eu escrevia, ela
me observava curiosa. Eu não hesitei e lhe ofereci um sorriso. Em troca, ganhei
sua confiança e também uma nova história. Os olhos, azuis e miúdos, pareciam
estar sincronizados ao próprio tempo das palavras que soavam de sua boca já
enrugada. Eram lentas as frases que se formavam entre o vácuo deixado de uma
sílaba a outra. Mas o sorriso banguela transparecia a alma. E a alma, quando
fala, grita mais alto que os trilhos de aço de um trem que nunca para.
E ainda instigada pela curiosidade que a aproximou de mim,
perguntou sobre o que eu escrevia. Olhava meus rabiscos com o mesmo entusiasmo
que tem uma criança ao se olhar no espelho. Falou que o máximo que sabia
escrever era o nome. Aprendeu depois de moça, quando o marido operário já não
podia ir às reuniões de escola do filho mais novo. O nome era tudo que dizia
escrever. Mas havia, ali, muito mais palavras que aquelas exprimidas em um nome
de tão poucas sílabas. Havia, ali, um tanto de palavras guardadas, que, agora,
estavam sendo todas entregues a uma estranha no banco do trem.
É que as palavras, quando permanecem muito tempo escondidas
atrás dos olhos, começam a criar raízes em quem as conserva. E ficam lá, só
esperando a chance de uma hora saírem escorregando em lágrimas ou no voo de uma
borboleta perdida em meio ao cinza que a circunda.
E aquele falatório sem fim contava de uns sonhos deixados no
interior de uma cidade também de poucas palavras. De umas estradas longas que
nem tinham placa. De umas gentes sem nome, mas que tinham palavras. As suas
palavras. Os seus tempos, os seus sons e as suas imagens todas feitas de
palavras.
A senhorinha, coitada, andava mesmo precisando se engasgar
com as palavras, até achar uma forma de cuspi-las todas por um chão de
concreto, de barro ou, simplesmente, de papel. Dizer em letras miúdas umas
grandezas que vinham tomando seu coração adentro. Após um tempo, confessou que
estava quase morrendo de palavras. E, por não escrevê-las, as mantinha junto de
si, pois sabia que eram as poucas que ainda restavam da cidade de pouca prosa,
das estradas sem placa e das gentes sem nome.
Eu andei um tempo guardando essas tão poucas palavras que
ela me disse. Não por nada, mas não sabia muito bem como fazer ostra virar
pérola. Minha vontade mesmo era a de mastigar cada uma delas, saborear até o
talo. “Mas, minha filha, tem horas na vida que engolir a seco é o melhor
remédio para as dores entaladas no coração”, foi o que me disse ela, enquanto a
cortina de ferro daquele trem se abria mais uma vez, deixando lá a senhora de
olhos azuis e rugas pelo rosto olhando para o vácuo que a separava de uma
multidão que sequer imaginava o tamanho da riqueza que ela levava na bagagem.
Em terra de trem, quem sabe guardar uma palavra é rei.