16 de agosto de 2013

Em terra de trem, quem sabe guardar um palavra é rei

Um dia desses, no trem, encontrei uma senhorinha que ficou me fitando de forma ininterrupta por vários minutos. Enquanto eu escrevia, ela me observava curiosa. Eu não hesitei e lhe ofereci um sorriso. Em troca, ganhei sua confiança e também uma nova história. Os olhos, azuis e miúdos, pareciam estar sincronizados ao próprio tempo das palavras que soavam de sua boca já enrugada. Eram lentas as frases que se formavam entre o vácuo deixado de uma sílaba a outra. Mas o sorriso banguela transparecia a alma. E a alma, quando fala, grita mais alto que os trilhos de aço de um trem que nunca para.

E ainda instigada pela curiosidade que a aproximou de mim, perguntou sobre o que eu escrevia. Olhava meus rabiscos com o mesmo entusiasmo que tem uma criança ao se olhar no espelho. Falou que o máximo que sabia escrever era o nome. Aprendeu depois de moça, quando o marido operário já não podia ir às reuniões de escola do filho mais novo. O nome era tudo que dizia escrever. Mas havia, ali, muito mais palavras que aquelas exprimidas em um nome de tão poucas sílabas. Havia, ali, um tanto de palavras guardadas, que, agora, estavam sendo todas entregues a uma estranha no banco do trem.

É que as palavras, quando permanecem muito tempo escondidas atrás dos olhos, começam a criar raízes em quem as conserva. E ficam lá, só esperando a chance de uma hora saírem escorregando em lágrimas ou no voo de uma borboleta perdida em meio ao cinza que a circunda.

E aquele falatório sem fim contava de uns sonhos deixados no interior de uma cidade também de poucas palavras. De umas estradas longas que nem tinham placa. De umas gentes sem nome, mas que tinham palavras. As suas palavras. Os seus tempos, os seus sons e as suas imagens todas feitas de palavras.
A senhorinha, coitada, andava mesmo precisando se engasgar com as palavras, até achar uma forma de cuspi-las todas por um chão de concreto, de barro ou, simplesmente, de papel. Dizer em letras miúdas umas grandezas que vinham tomando seu coração adentro. Após um tempo, confessou que estava quase morrendo de palavras. E, por não escrevê-las, as mantinha junto de si, pois sabia que eram as poucas que ainda restavam da cidade de pouca prosa, das estradas sem placa e das gentes sem nome.

Eu andei um tempo guardando essas tão poucas palavras que ela me disse. Não por nada, mas não sabia muito bem como fazer ostra virar pérola. Minha vontade mesmo era a de mastigar cada uma delas, saborear até o talo. “Mas, minha filha, tem horas na vida que engolir a seco é o melhor remédio para as dores entaladas no coração”, foi o que me disse ela, enquanto a cortina de ferro daquele trem se abria mais uma vez, deixando lá a senhora de olhos azuis e rugas pelo rosto olhando para o vácuo que a separava de uma multidão que sequer imaginava o tamanho da riqueza que ela levava na bagagem. Em terra de trem, quem sabe guardar uma palavra é rei.

La Valse D’Urbana

E em meio a tantos vulcões rodopiando a mente, eis que o tempo se rendeu ao tempo de parar um tanto na Avenida Paulista para uma valsa em pleno sábado à noite. E, enquanto a polícia nos olhava do outro lado da rua, do lado de cá, o som de cada nota daquele acordeon se misturava às nossas mãos entrelaçadas, aos nossos giros sem ritmo, ao nosso ritmo sem ritos. E a simplicidade se fez tão grandiosa, que os olhos curiosos não cansavam de nos vigiar, enquanto dávamos giros de trezentos e sessenta graus, invadindo o asfalto, os prédios e as gentes de alma pequena. Causávamos tumultos, batidas de carros e murmúrios de toda natureza. Lá fora, o caos. Cá dentro, apenas a harmonia das notas de um acordeon, em pleno fervor de uma Avenida Paulista.

Quem conta um conto...

É preciso se desacostumar do costume alheio. Voltar ao ponto zero, mais uma vez. Afinal, é necessário estar neutro para conseguir somar novas contas ao seu próprio conto.

Desnarcisando

Tem horas que nossos espelhos nos viciam tanto, que é melhor quebrá-los. Encontrar novos espelhos pra nos espelharmos. E assim ocorre também com a bolha que nos circunda. E quando nos vemos tendo que estourá-la, a mente dói, o corpo sente. É preciso estar longe de si próprio e de toda sua origem pra saber o quanto precisa disso. Mas estar longe é necessário. Não se constrói o novo sem lembrar do velho, mas também não se modifica o novo, se apenas utilizarmos as referências do velho.

Eu (não) quero C, eu quero star

Hoje eu sou objeto de estudo.
Um quase ser analisado em todas as dimensões.
Me desmiuçaram dos pés à cabeça, numa hipótese confusa dizendo que, antes deles, eu não era.
Comecei até mesmo a aparecer no jornal, na nova vírgula decimal que faz de mim uma porcentagem constitucional.
E, em meio a tantas hipóteses, chegaram à conclusão que meu nome agora é C.
Como C, bebo C, ouço e visto C.
Na boa?

Eu não quero C, eu quero star!

Esse meu olhar de bala

E meu olhar, agora, é só uma câmera fotográfica assistindo ao longe mais um corpo passando. E a minha mente se confunde com os livros na estante e com as multidões correndo de balas, de gás, e de outras gentes. Busco de forma incessante uma saída, uma forma de dizer chega! de dizer basta! mas o meu grito sozinho, é só uma sílaba flutuando num ar sufocante, que, pra ser frase inteira, precisa de mais, de muitos, de todos. Recuo. Avanço. Recuo outra vez. Lembro dos livros, das frases de paz, a não-violência, a firmeza permanente. A confusão remonta inteira em cima de mim. Pra onde é que estamos indo? E será que este é mesmo o caminho? E se a gente tentasse fazer diferente? Mas e se ninguém nos olhar, mais uma vez? Meu grito sozinho é só uma sílaba, recordo. E aí, numa rua sem saída, eu me encurralo em minhas ideologias. Se não tenho a melhor via, junto-me aos demais. 'Morremos no caminho, mas não a sós'. (inspirado dolorosamente nas manifestações de junho de 2013).  

Das presenças tão ausentes

Acabo de ver uma foto de Dominguinhos acompanhada de uma frase dita por ele e Renato Teixeira: "Os verdadeiros amigos sabem entender o silêncio e manter a presença, mesmo quando ausentes". Soa clichê botar uma frase do homem assim, logo após sua morte, mas é que ela faz tanto sentido, pois, assim como, agora, há uma sanfona e uma legião de fãs silenciados, esse mesmo silêncio é que nos levará às lembranças, ao sorriso dado, ao abraço apertado, ao até logo que não chegou. Andei pensando, esses dias, sobre a tal da "amizade verdadeira". Deparei-me com um tanto de saudades de conversas que não são mais as mesmas, de expressões que já não fazem mais sentido. Vi fotos de gente que, hoje, já não reconheceria passando na rua. São rostos que já riram ou choraram ao meu lado. Já me juraram amizade eterna. Seria muito injusto dizer que vocês todos, hoje tão distantes, não são amigos verdadeiros. Há dificuldade bastante em compreender que as relações afetivas que vivenciamos não são nossas propriedades. Muitos momentos da vida nos permitem aproximações e fidelidades incomparáveis. Mas tempo e espaço também são unidades em constante mutação. É difícil compreender que tanto assunto acabou se transformando em um breve "olá, como vai, tudo bem?". É preciso domar a alma para aceitar a palavra ex-amigo. Eu aceito até ex-namorado, mas ex-amigo é palavra que desce rasgando goela abaixo. Aí tu pensa em vomitar todas as histórias ou confidências, em um gesto de vingança, já que não possui mais aquilo que outrora ninguém lhe tirava. Agora, assim como a frase de Dominguinhos, restam apenas o silêncio, a ausência e a certeza de que todos aqueles que passaram estão presentes de alguma forma.

D-E-Z

Cem (dez)culpas
para as (Dez)ilusões de um 
(Dez)amor

Contra Tempo

O que me entristece é que o tempo vem me ocupando tanto tempo, que nem tenho tido tempo de ter tempo.

Oração da revolta

Limar as regras e derrubar os muros. Senhor, se estás aí, faça de mim um ser ilegal, mas nunca imoral. Que eu cometa ilegalidades nesse sistema irreal. A lei, aqui, só serve ao mané que se diz o tal. Que eu abandone os protocolos, jogue fora as etiquetas e os seres de alma tão pequena. Amém.