13 de dezembro de 2015

O menino, a pipa, a tia

Daqui da janelinha grudada à antiga porta de madeira, vejo o tempo que corre na rua pelas pernas do menino que acabou de perder a pipa; pelas mãos que não se cansam, nunca, de desbicar cuidadosamente a pipa que vai, dançante, no céu. Até que um outro moleque chegue, corte, derrube, o sonho pairado no ar, que tem tido, nos últimos dias, um destino certeiro: o quintal azul. "ô, tia, pega a pipa que caiu ali pra mim?". "Uma caixa de chocolate de natal, então". "Demorou, tia", e sai, sabendo que, em 5 minutos, volta gritando.

Histórias de trem: o equilibrista

Hoje, em histórias de trem
"Você se equilibra bem", disse, meio baixa, uma voz que vinha do meu ombro direito. "É a necessidade, moço". Ser baixinha no trem lotado exige certas habilidades. "É só olhar para um ponto fixo e manter o joelho flexionado, na posição neutra. Pronto". Tentou uma, tentou duas. "No trem eu não consigo, mas eu conseguia me equilibrar quando andava a cavalo na minha cidade natal, mesmo baixinho, eu não caía, acredita?". E eu, que nem dou corda às prosas trenziárias, perguntei se ele ainda continuava se equilibrando em meio à correria de São Paulo. "Sim, sim, vou ali no Parque da Água Branca, lá tem cavalo"! Nessa hora, meu destino chegou. "Tchau. Tchau. Boa sorte". Saí empurrada pela multidão. Por pouco não caí. Às vezes, o equilíbrio se perde, assim, num simples vão que separa o trem da plataforma.

Rústico

Tudo está, ainda, onde estava. As cadeiras, emadeiradas, envelheceram, há de se dizer.O chão rústico, vermelho, não é nada além de escorregadio, assim como todos que vêm passando, indo. Mas tudo está firme, assim como aquela raiz de mamão que se envolveu nos canos do quintal. Arrancada à forceps, sinto que ainda há seu cheiro quando passo por lá. Cheiro de mamão verde, misturados aos pés de couve, ao milharal que há muito já não existe. Recolho as poucas raízes que restam. Finas, curtas, sinto que a cada dia que passa elas se dissolvem ainda mais. O concreto cobre, duramente, cada uma das poucas aberturas deixadas. Receio que nunca mais encontrarei brechas para novas plantações, enquanto seguro com todas as garras as sementes que esqueceram em minhas mãos. Hão de encontrar terreno, eis de ser apenas uma questão sazonal.

As seis funções

1. Coloco, lado a lado, pé, tristeza, cabeça e coração
2. Ah, que coisa louca, o tempo passa, voa!
3. Tu não tem aí uma explicação?
4. O som, que o tempo carrega, também aqui escorrega
5. Chove forte, não há trégua, não.
6. Toda palavra é uma desculpa não perdoada.

Calejada palavra

Espalha-se, palavra, nas mãos calejadas de tanto pensar, palavra. uma, duas, quatro, mil palavras. pois, então, porque, senão, se eu que sou tantas palavras, ainda não sei dizer sequer uma. sempre nessa imensidão, jogo aqui, ali, não acerto a mão, palavra. pa-la-vra. lavoura de dizeres sempre confusos, discurso sem sentido, valor, consequência, de um dizer que custa caro aos meus dedos que não aguentam mais as mesmas palavras.