27 de abril de 2013

Histórias de trem, capítulo de hoje: o homem traído

Cheguei atrasada na estação. Avistei, ao longe, um banco vazio. Eu tinha apenas a uma hora e quinze do trajeto para saber tudo sobre Chia e Ômega-3 (é!). Sentei, quando botei a mão na revista, que levava um belo de um salmão na capa, uma voz ecoou em meu ombro. "Comer peixe é muito bom, é a melhor coisa pra saúde". Concordei com a cabeça e a voz prosseguiu. "Sabe, minha vizinha curou um câncer comendo peixe todos os dias. O médico manda a gente comer peixe, sabe?".
Nisso, o trem estacionou na estação e a voz me acompanhou vagão adentro. Tinha nome, endereços e histórias. Dessa vez, quem vinha compor mais um capítulo desse divã era o Seu Antônio. Um negro de mais ou menos um metro e setenta, vestia calça social, camisa branca e levava consigo uma maleta. Eis que o peixe da capa da revista fora apenas o gancho de uma conversa que duraria sete léguas de estações.
Seu Antônio estava voltando de uma de suas casas de aluguel, em Perus. Além dessa, tinha também uma outra num bairro que já não me lembro o nome. "Eu sou um homem bem sucedido, eu tenho dinheiro, faço empreiteira pro Pão de Açúcar, você conhece o Pão de Açúcar, né. Tenho muita gente trabalhando comigo", ia dizendo, enquanto o trem nos balançava de um jeito que parecia que jogaria fora, caso não fossem suas janelas e portas pichadas.
A vida do homem que gosta de comer peixes começa a esquentar quando ele ainda tinha 19 anos e começou a trabalhar como pedreiro para grandes empreiteiras. Nessa época, Antônio diz que era um homem bonitão, sempre vivia arrumado e costumava sair para dançar. Mas foi aos trinta e poucos anos, que o homem teve uma grande reviravolta. Trabalhava numa obra no Brás, onde havia um restaurante bem em frente com comida barata. Foi lá que antônio conheceu a garçonete que, quinze anos mais moça, iria se tornar a mãe de seus filhos.
Os dois, cristãos protestantes, logo se casaram em uma Congregação. Os filhos cresceram e, certo dia, a mulher de Antônio resolveu mudar de igreja. Ele achou estranho, mas aceitou. "Era gosto dela, né". Passou a usar batom e vestir calça comprida. Agora, ela não queria mais saber de ser só a mãe-mulher-dona de casa. Queria ser a mãe-mulher-dona-de-casa-e-trabalhar-fora. E foi. "Mulher minha não precisa trabalhar. Não faltava nada pra ela, não sei por que isso".
Eis que a dona foi viver novas vidas, aquela que, aos quinze, lhe fora roubada por uma paixão. Até que um dia resolveu ir embora. Arrumou todas as lembranças dentro de uma mala, amassou bem para caber tudo e partiu. Os filhos, já tudo criado, ficaram com o pai. "Eu tenho uma família já formada advogada. Eu não sei o que aconteceu com a cabeça da minha mulher, era tão direita".
O ex-marido ficou tão desesperado que um dia sentiu até o cheiro dos rastros da mulher. Havia ido comprar um terno, para reunião que teria pra fechar contrato com uma empreiteira. Resolveu descer no bairro da Lapa, ver se achava algo mais barato. Encontrou. Depois, quis dar uma volta no shopping e comer alguma coisa na praça de alimentação. Pra quê? Quando ia pegar seu lanche, deparou-se com a amada toda em carinhos e afagos com um novo amor, o porteiro do prédio onde agora reside.
"Eu tive vontade de pegar uma faca e...você acredita nessa situação? Tava parecendo uma mocinha lá, toda toda, você acredita?", contava, enquanto passava a mão no rosto, como se a pressão arterial fosse explodir só de lembrar o fato.
"Você sabe que a mulher me trocou por um homem que ganha mil reais por mês? Você acredita? Mil reais é o preço de uma casa de aluguel minha. Eu tenho é pena dela, ela que vai sofrer", dizia, como diz a criança mimada, inconformada por alguém trocar sua moto motorizada por um carrinho de rolimã, sem pensar que esse último, improvisado com madeira simples e rodinha emprestada, pode fazer alguém mais feliz que o brinquedo caro.
Nesse dia, ouvi com atenção, sem dar pitacos. Eu não mudaria a dor, muito menos os dogmas que já haviam criado raízes naquele senhor. Descemos na Barra Funda. Ele deu adeus, eu recomendei Ômega-3 pro coração.

(Cá pra Nós nos trens da CPTM)

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