29 de novembro de 2012

Tina: uma memória viva de 89 anos


Recordar: do latim recordis, voltar a passar pelo coração. 

Quantas são as pessoas que  não desejam, ao menos em uma fração de segundos, passar novamente pelo coração aquela sensação que outrora viveu? Todo mundo sente vontade de recordar, de voltar a passar pelo coração. E, ao mesmo tempo, sente medo, muito medo de não sentir mais esse “coração”, caso a memória seja esquecida.

Emoção e memória. Duas palavras dentro de um mesmo organismo vivo, revirando células e neurônios, em busca de um sentido para a vida. 

Para um escritor, a memória passa pelos dedos até se transformar em verbetes. Para uma senhora de 89 anos, ela passa apenas e exclusivamente pela alma.  Dona Laurentina Almeida nasceu em 1923, em uma fazenda de Piracaia, interior de São Paulo. Infelizmente, não pôde estudar. Não escreve, nem lê. Mas dinheiro ela sabe contar, sim senhor. E, apesar da idade avançada, lembra de todas as datas e nomes de pessoas daquela época da fazenda. “Eu tenho muito medo de perder a memória, mas eu rezo todos os dias para o Divino Espírito Santo não deixar isso acontecer, já que meu falecido marido morreu com Alzheimer”.

Dona Laurentina caminha bem, sem precisar se escorar em algum tipo de acessório. As rugas em seu rosto parecem um mapa, indicando os caminhos pelos quais esta senhora percorreu durante os seus quase oitenta e nove anos. São linha finas, mas cheias de memória.


São 10h25 da manhã. Já faz quatro horas que ela se levantou da cama. Começa, agora, a preparar o almoço. “Acordo sempre umas cinco e pouco”. Diz ela, enquanto amarra o lenço na cabeça. A senhora não sabe explicar por que acorda tão cedo. Sempre foi assim, desde os tempos que morava no interior. “Tem muito que fazer. A turma vai trabalhar e tem muito que fazer da vida, na casa”.

Hoje é sexta-feira. Dia de peixe na casa da família de dona Laurentina. Pede pra eu acompanhá-la na pia do rancho, onde irá limpar o peixe. Enquanto responde às minhas perguntas, a alegre senhora vai tirando os espinhos da sardinha que daqui a pouco será frita.

A maior parte do tempo matinal, Laurentina passa na cozinha, onde o tempo nunca para, sempre se mexe entre uma colher e outra dentro da panela.  E esse tempo, para ela, parece estar em uma constante ebulição, fazendo o horário do almoço chegar mais rápido que o esperado.  

Quando pergunto a data de seu nascimento, ela diz, enfaticamente, “põe trinta de novembro, data de registro. O dia no nascimento, quinze de novembro, morreu”.  E entre um prato e outro, Laurentina vai contando sua história, com uma riqueza de detalhes que impressiona, já que são coisas que se passaram há setenta ou oitenta anos. “Com cinco anos eu já fazia serviço: varria a casa, escolhia feijão e cuidava do meu irmãozinho, o compadre Zezinho”. Enquanto fala, tira o cabelo do rosto e enxuga as mãos no avental. 

Até sua brincadeira era coisa de gente grande. “Brincava de casinha na beira da casa. Pegava o caco da tigela que quebrava ou da latinha e colocava em um armarinho de tijolo, feito de bloco e tábua de madeira como prateleira. Eu mesma que fazia”, conta orgulhosa e feliz. 

Depois, vêm as lembranças da adolescência, esbarrando-se naquilo que seu coração não quer jamais esquecer: o amor de sua vida, Sebastião André. “No total, foram 69 anos de convivência”, comenta com saudosismo e um pouco de tristeza. Nos últimos quinze anos de vida de Sebastião, ele já não se lembrava de nada. Neste momento, uma de suas noras aparece e Laurentina comenta sorrindo “Ela está me tirando lá do fundo do mar para ficar me especulando”.  Depois, volta a falar do marido com uma tristeza no olhar, pois como o conheceu durante quase setenta anos, foi muito angustiante para ela ver um homem tão forte e inteligente, como era seu Sebastião, acabar a vida em cima de uma cama, sem lembrar das modas de viola que, durante toda a vida, havia composto.

“Tudo começou quando ele tinha uns setenta e cinco anos, depois que foi assaltado. Caiu em depressão e não queria mais sair de casa. Não lembrava da netaiada, nem dos filhos.  O Bastião não aceitava também a idade que tinha. Ele não era como eu, que aceito ser velha. Ele não queria envelhecer”, fala já conformada. 

E da senhora, ele também se esqueceu?, questiono.  “Não”, diz incisiva. “De mim ele sempre lembrou”, diz orgulhosa.

Mexe na testa, cruza as mãos. Pensa e conclui: “Perder a memória é coisa muito triste. É esquecer da vida. Aí não tem nem mais vontade de viver mais”. Mas o maior receio de Laurentina está em algo muito mais subjetivo que a própria memória. “Tenho medo de esquecer das minhas rezas. Espero não perder nunca, se Deus quiser, porque a reza é a defesa da gente e da nossa família”. 




Hoje, a inspiração desse texto completa 89 anos. Se fosse me dado o direito de ter três pedidos na lâmpada mágica, eu pediria que ela vivesse mais 89, pra me encharcar com teu risinho simples, às vezes sem jeito, que vem toda manhã abrir a porta do quarto pra saber se ainda estou dormindo. 

Deus e um bêbado retardado levaram embora minha outra avó, antes mesmo que eu a conhecesse. Cresci orfã de uma vó. E essa dona Tina me supriu, sendo vó duas vezes. E também sendo mãe, quando era preciso. E amiga todo o tempo. 

Quero tuas histórias pra sempre. E pra sempre quero tuas memórias, inconfundíveis, assim como é também esse teu jeito de dizer "Vai com Deus e que Ele te acompanhe". Mesmo hoje não dando nome mais ao meu Deus, sinto que essa frase é que me rege, me guarda e ilumina. 

Tina, Tina, minha, nossa Tina. Viva pra sempre! 


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