8 de setembro de 2015

Travessia

Na travessia desses dias que correm feito pés apressados, acomodei-me num canto da Westmoreland Street. Pra deixar essa mistura de sentimentos todos se juntarem ao som da furadeira, um ruído sem fim que inundava a rua de cima a baixo, em todos os lados, em mim. Tal como, eu, do mais estreito lado da rua, deixava que os outros sons também fizessem morada nos espaços em branco que ainda me restavam nāo pincelados. Os pés, os carros, os carrinhos de bebês passando em minha fronte. O menino correu, atravessando o semáforo aberto. Pulou a calçada feito um vencedor ao podium, arrumou a mocilha e seguiu com aquelas pernas compridas em calças pretas. Enquanto as meninas, em suas curtas saias, lutavam contra o vento num duelo costante de quem bota mais medo. Ora, mas ninguém se queixa, ninguém se vê, e passa pisoteando a pintura feita à giz no amanhecer do dia, naquela calçada quebrada. Suja, onde ontem só havia restos da cerveja que se embrulhou no estômago do rapaz que zigue-zagueava a calçada sem paradeiro. Quantos desses tenho eu, meu Deus, visto nos ultimos 350 dias. Quantas madrugadas tenho atravessado as mesmas ruas, o mesmo rio Liffey, e olho para ele lá, e toda a paisagem que o remonta, e no fim ele é que me atravessa, na beleza das luzes azuis dessa ilha verde, esmeralda, multicolor, como hão de ser todos esses que aqui passam ao meu lado. Em suas línguas estrangeiras ao meu ouvido, mas abertas em meu coração. Eu posso sentir a insatisfação dessas palavras, assim como a doçura de suas sílabas que passam todo o tempo, me enchendo de mundo. E, então, eu vivo outra vez, e enquanto enquanto assim me sinto, a menina de ares latinos joga suas malas, cadernetas, feito enxurada no chão, enquanto sua voz entoa uma ave maria mais ardida que a furadeira que outrora inundava a rua. E eu, meus vazios, a furadeira, a soprano, os pés sobre o asfalto, tudo, todos meus buracos se tornam completos, cheios da vida dos outros.. (Dublin, Julho, 2015)

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