15 de novembro de 2015

Ao Meu Malandro

Era de manhãzinha do dia 1º de novembro de 1958, quando d. Laurentina, prenha, começou a sentir as primeiras contrações. O dia era de chuva fina na fazenda à beira da estrada de Atibaia (interior de SP). O menino mais velho, João, que dormia tranquilo no quarto, foi levado no colo, às presas, até a sala. As meninas Luzia e Cecília dormiam na cozinha da casa de apenas três cômodos. A parteira Benedita Joaquim, uma negra forte, baixinha, estava prestes a chegar. Às seis daquele dia, vinha ao mundo no dia de todos os santos, Sebastião André Filho, que de vinte e quatro anos pra cá também sou eu, Jéssica André, prazer aos que não conhecem. A placenta foi enterrada em um buraco cavado ali mesmo no quartinho, pelas mãos do Bastião-pai-meu vô. O primeiro leite não foi da mãe. Os seios ainda estavam secos. A ama foi nhá Benedita, que havia dado à luz recentemente. Até os cinco, foi em Atibaia que fez morada. Depois, foi em Perus que o menino se fez adolescente. aos 9, pra comprar sua primeira bicicleta, vendia amendoim aos vizinhos que iam assistir televisão preta-e-branca na sala de casa. Depois, foi no algodão doce que encontrou o meio de sustento. Gabava-se até pouco tempo por conhecer cada rua dessa cidade de São Paulo pelas solas dos pés. Aos 17, as peladas no campo improvisado misturados às artimanhas da malandragem ditaram a passagem da adolescência à vida adulta. O irmão caçula, Tiago, era seu fiel escudeiro. Nos passes em jogo, nos passes da vida. A malandragem do morro da Flamengo nunca mais foi a mesma depois dessa dupla. Mas os trinta chegaram, o Ricardo, o Rafael e a Jéssica também. Agora, era ele o malandro-pai. Virou leitor de luz, de água, de gás. Depois, as crianças foram crescendo, veio também a Beatriz e o Tiãozão virou um malandro-vô. A idade havia chegado, ele não gostava muito e, por isso, pedia toda semana que eu tirasse seu bigode branco. Mas cabelo não pintava, não, o machismo encoberto não o permitia. Anos iam, anos vinham, e o malandro começou a definhar. Parou de dirigir, parou de ir às festas do santo de Pirapora. Não caminhávamos mais pelo Parque da Luz cantando os sambas e os raps que, sozinhos, criávamos sentados à beira dos balcões dos butecos sujos - aqueles onde, outrora, ele vendia, dava aos amigos as fichas de fliperama. Maconha era assunto permitido entre nós e whisky com energético tomado no mesmo copo. Eu era, assim, a malandra-filha. Éramos assim, até que, um dia, a malandragem definhou, a diabetes chegou a 560. As mesmas pernas que caminhavam São Paulo já não aguentavam aqueles nervos de aço. Foram vinte dias de pronto-socorro, maca no corredor, , médico cuzão tirando com nossa cara - ser pobre não é fácil, nem mesmo pra quem a vida inteira foi malandro, pra driblar esse sistema injusto. Eu, do lado de cá, fingi de malandra e finjo até hoje, cantando a ele, ao pé do ouvido, à beira daqueles quartos gélidos, os sambas de nossa trajetória. No dia 2 de julho, às quinze pras onze da manhã, senti um aperto na espinha. Era o velho me dando tchau. Sabia que, depois dali, só sobrariam essas rasas memórias, que todo dia eu fico juntando, feito cacos. Até hoje, depois de 1 ano e meio, quase, eu ainda me dirijo ao quarto dizendo pa...i, não está aqui. Vivo com isso como se vivem os doentes crônicos. Vou morrer com essa dor aqui cravada em mim e, enquanto eu viver, meu pai vive junto. E não mexe comigo, não, que a malandragem que vivia nele - ancorada pelas armas de Jorge -, em mim é em dobro. Porque como diriam, malandro não para, meu pai só deu um tempo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário